Uma vinheta clínica e algumas reflexões pessoais. Isso porque me impressionam os reforços negativos na dependência química que se assemelham a automedicações. Isto é, quando pacientes usam certa substância (álcool, maconha e etc.) para remediar alguns de seus problemas.
Não vou entrar no que é dependência química agora, confiando na sua intuição sobre o tema. Apenas quero apontar como que, muitas vezes, a pessoa usa da substância para se “automedicar” e acaba saindo com mais problemas do que entrou.
O caso clínico da dependência química
Outro dia, atendi um garoto que usava maconha diariamente, cerca de dois baseados por dia. Seu uso havia crescido muito nos últimos anos, mais do que duplicado, e ele estava bastante preocupado com os efeitos deletérios do uso crônico de maconha, sobretudo os efeitos sobre a sua memória. Ele era um estudante de performance elevada e, por isso, não podia se dar o luxo de não ter a sua memória na mais alta produtividade.
Porém, ele tinha um humor muito ansioso, além de alguns problemas para dormir. A maconha o auxiliava com isso. Quando ele a usava, sentia-se mais calmo e o seu uso à noite lhe dava sono. Em suma, a maconha entrava dentro de suas formas de manejar o estresse do seu dia-a-dia, como uma espécie de coping (maneira de lidar com algo) químico.
Do conflito, porém, entre os malefícios e os benefícios da substância em sua vida, aparentemente ganharam os malefícios, pois lá estava ele, pedindo auxílio para interromper o uso da maconha.
Não há substância absolutamente maculada pelo mal
Não reconhecer na substância seu status de substância, pelo simples fato de que, tal qual ela interage com o organismo, ela ser capaz de criar dependência, é algo errado. Toda substância age no organismo e produz nele algo de bom ou de ruim. Quando, porém, uma substância é capaz de criar dependência, saber o que de bom provoca a substância em certa pessoa é uma matéria de suma importância para a psiquiatria. Talvez até mais importante do que saber o que ela causa de ruim.
Dentro do que quero passar, essa informação assume um caráter até mais importante, porque a pergunta muda de “o que de bom causa a substância” para “o que a substância dependogênica (que cria dependência) busca remediar?” Quando a pessoa usa a substância como “remédio”, não responder esta pergunta significa correr o risco de errar no seu tratamento.
No caso acima, por exemplo, a maconha era usada para “tratar” a ansiedade e a insônia. Tal tratamento servia de reforço negativo a perpetuar seu uso pelo paciente, isto é, o alívio da ansiedade e da insônia reforçavam o comportamento de fumar maconha, comportamento esse reconhecido como negativo pelo próprio paciente.
A dependência é dor, mas nasce do prazer
Assim, de nada adianta simplesmente taxar o uso de certa substância como absolutamente ruim. Isso é um equívoco. É preciso pô-lo em relação à vida do paciente, ao seu contexto. A dependência é uma função da química cerebral, sem dúvida, mas não apenas pelo lado negativo; há na química, além do craving (reações de busca intensa por certa substância, vivenciadas negativamente), o prazer ou o alívio da dor. A dependência, sem dúvida, é também função desta química.
Assim, no caso do meu paciente, o tratamento da dependência dele passou por abordar sua insônia e sua ansiedade de modos mais saudáveis, para que assim ele conseguisse abrir mão da maconha como coping químico.
Por isso, quando estiver diante de um dependente químico, sobretudo daqueles com uma dependência leve a moderada, não deixe de se perguntar o que será que ele ganha com aquela dependência. Talvez possa até não ganhar nada, mas em alguns casos é possível que ele ganhe algo, ainda que de modo disfuncional.