O abuso da insônia

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Pedro Jorge Pércia Namé de Souza Franco

Médico, graduado em medicina pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), e psiquiatra, com a residência pelo Hospital das Clínicas Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O abuso da insônia

Quem nunca perdeu uma noite de sono? Talvez seja impossível, na contemporaneidade, atravessar uma existência sem uma noite mal dormida. Seja ela determinada por uma angústia pontual do nosso cotidiano, seja como sintoma inserido no contexto de um sofrimento mental mais complexo, a insônia tem se tornado cada vez mais frequente na vida das pessoas ao redor do mundo.

De onde vem a crescente da insônia?

De uma forma ou de outra, “perder o sono” parece que se tornou a norma. Quase 45% da população mundial sofre de algum tipo de insônia. No Brasil a situação não é diferente, ela se faz presente em aproximadamente  75 milhões de brasileiros.

A problemática da insônia na atualidade está intrinsecamente associada à reconfiguração social advinda da era pós-industrial. Desde o nosso avançar sobre a noite e o impulsionamento das formas de socialização onde a atenção é um ativo econômico e a produtividade moldou-se como  grande virtude do capital, o sono tornou-se um adversário instintivo dos mais problemáticos. Porém diferente do sexo, fome e socialização que podem mesmo como sintoma servir aos imperativos sócio-econômico, o sono impõe-se incapturável, não sem consequências, pelo menos. O “Trabalhe enquanto eles dormem” não tarda a esbarrar nas consequências fisiológicas de um corpo que exige repousar.

Como bem demonstrado no livro 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono de Jonathan Crary, se a insônia emerge como uma questão estrutural provocada pelos imperativos econômicos e incide de modos diferentes nas classes, gêneros e raça, suas soluções parecem sempre surgir com uma excessiva implicação do indivíduo e de seu corpo na questão.

A problemática da resolução do problema

Como é de se esperar dentro da atual ordem social, os graves problemas estruturais são habitualmente abordados por esse prisma individual. Abundam saídas individualizantes para esse grave problema social. Atestadas tanto pelo assustador aumento do consumo de psicofármacos como pelo grande incentivos e apelo por mudanças comportamentais através de um autoaperfeiçoamento. No Brasil, por exemplo, segundo dados da FioCruz de 2015,  6 milhões de pessoas usaram algum benzodiazepínico (medicamento usado também para dormir e que causa dependência) sem prescrição médica. Batem recordes seguidos os downloads de aplicativos que ajudam as pessoas a gerir melhor seu sono, seu corpo e seu tempo através de inúmeras estratégias, sempre individualizantes, sempre em consonância com a saída de reconduzem ao mundo da produtividade.

Não intento aqui minimizar a importância individual que certas estratégias terapêuticas podem ter na vida de uma pessoa em sofrimento mental, porém não podemos deixar de refletir e questionar, mesmo em ambientes privados, sobre as novas soluções oferecidas pelos criadores do problema. Que saídas coletivas e estruturantes sejam cada vez mais propostas para também enfrentar esse assustador quadro de insônia generalizada.

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