Como a cultura influencia os sintomas psiquiátricos?

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Thales Pimenta

Médico, graduado em medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e psiquiatra pelo Hospital das Clínicas da UFMG. Ademais, é acadêmico do curso de filosofia, na Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas (FAFICH) da UFMG.

Como a cultura influencia os sintomas psiquiátricos?

Há um mês, um excelente preceptor, eu e uma de suas alunas de graduação publicamos um relato de caso surpreendente. Nele, uma clássica manifestação psicopatológica, chamada Delírio de Capgras, mostrava-se reestruturada por nossa cultura contemporânea.

No relato, apontamos como tal manifestação havia incorporado elementos culturais que não existiam quando Capgras a descreveu pela primeira vez, na França de 1920. Com isso, buscamos entender, como a cultura influencia nos sintomas psiquiátricos.

O clássico Delírio de Capgras

Capgras foi um médico psiquiatra francês que, nos anos 20, relatou o caso de uma mulher que, segundo ele, era incapaz de reconhecer as pessoas como sendo as originais. Quase impossível de acreditar, mas a verdade é que essa mulher até reconhecia as pessoas, mas dizia que elas eram impostoras.

Para ela, as pessoas tinham características idênticas às originais, mas não eram as originais: eram sósias. É como se você “reconhecesse, mas não reconhecesse” seus amigos. Como se você conseguisse nomeá-los, mas não acreditasse que eles fossem eles mesmo. Estranho, não é mesmo?

Não só estranho, como também absolutamente angustiante. Imagine que, de repente, você comece a reconhecer todos ao seu redor como impostores. Quantas perguntas não iriam surgir em sua mente! O que está acontecendo? O que querem estas pessoas de mim? E por aí vai.

Joseph Capgras

Uma cultura nova, novas manifestações

No nosso relato, descrevemos uma mulher que também “reconhecia e não reconhecia” as pessoas. Contudo, ela fazia isso a partir de mensagens de WhatsApp.

Tal mulher olhava para suas mensagens de WhatsApp e dizia que, embora elas viessem de contatos com números de telefone exatamente iguais aos dos originais, tivessem fotos de perfil igualmente idênticas aos verdadeiros, bem como vozes (que chegavam nas mensagens de áudio) também perfeitamente semelhantes aos originais, eles eram impostores, sósias daqueles verdadeiros.

O caso, como se pode perceber, é tão parecido com o caso do Capgras que, ao publicarmos, dissemos que se tratava de um caso de Capgras Digital. Aqui se percebe, claramente, a influência da cultura na manifestação psicopatológica. A França dos anos 20 certamente não conhecia ainda o WhatsApp!

Mecanismos antigos sobre mundos novos

Imagine você uma máquina capaz de selar várias coisas. Imagine, agora, que durante muitos anos ela selou cartas. Hoje, porém, como cartas são muito poucos utilizadas, a máquina começou a ser empregada para selar caixas de leite. Seu mecanismo de selar nada mudou, ela agora só sela algo diferente do que antes selava.

Do mesmo modo podemos entender o cérebro. Há nele uma série de mecanismos que visam apreender e prever a natureza ao nosso redor. Se antes, a natureza não era dotada de, por exemplo, celulares com WhatsApp, o cérebro não apreenderia e preveria nada a seu respeito. Hoje, porém, como eles estão na natureza, isso acontece.

Por outro lado, quantos de nossos ancestrais não colocaram suas mentes para trabalhar visando entender o melhor momento de, por exemplo, sair para caçar certo animais? Certamente, inúmeros! Hoje, porém, como quase não caçamos, usamos nossos cérebros para prever outras coisas, como o melhor momento de sair de casa para pegar o ônibus. 

Isso quer dizer que, por mais que nossa cultura mude — e ela muda muito e muito rápido –, nossos cérebros são sempre os mesmos. Nossos mecanismos cognitivos, emocionais, perceptivos e etc. não mudaram desde que o primeiro Homo sapiens sapiens habitou este planeta. Contudo, eles vêm constantemente mudando sobre o que apreendem e prevêem.

Não existe sintoma sem cultura

Não se engane, então, em pensar que nós somos nós mesmos e pronto e acabou. O mundo influencia de modo irreparável como pensamos e agimos. Não houvesse o WhatsApp, não se comunicasse por celular, a mulher de nosso relato talvez manifestasse um Delírio de Capgras clássico. Mas como há e como ela se comunica por WhatsApp, aconteceu como aconteceu. Nossos mecanismos cerebrais estão constantemente versando sobre a nossa cultura. Um não existe sem o outro. Estão tão imbricados, de modo tão inseparável, que podemos dizer que não é possível falar de sintomas psiquiátricos sem falar de cultura. Os sintomas sempre estarão em constante conversa com a cultura.

Referência

Pedroso, VSP; Figueiredo, TP; Maltri, R. Capgras Delusion in the Digital Age. 2021. Disponível em: https://medwinpublishers.com/PPRIJ/capgras-delusion-in-the-digital-age.pdf. Acesso em: 20 jan. 2022.

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