Que a psiquiatria é uma especialidade médica, muitos sabem. Também é notório seus constantes contatos com os mais diversos campos do conhecimento, suscitando polêmicas muito enriquecedoras à prática psiquiátrica. O que menos pessoas conhecem é o caráter artístico (do grego, techné) da psiquiatria. E é sobre ele que pretendo comentar um pouco agora.
Na verdade, antes de entrar de cabeça no assunto, uma ressalva: não só a psiquiatria é uma arte. Qualquer especialidade médica é uma arte, porque a medicina é um saber artístico. Portanto, nada de novo sob o sol.
Arte? Para com essa!
Calma, calma! Longe de mim dizer que a psiquiatria é uma arte como a música, a pintura ou a literatura! Seria muito desonesto!
A psiquiatria é, sem dúvida, em parte ciência. E, por isso, ela se debruça sobre o mundo, buscando desvendá-lo. O psiquiatra corre atrás da verdade. O músico, por outro lado, cria sua própria verdade. A criação da psiquiatria não é, por assim dizer, exatamente original. Ela é uma criação circunscrita a fenômenos que se colocam aos seres humanos independentemente de suas vontades.
Claro que o músico não pode fugir à escala do audível humano. Mas é uma questão quase vetorial: o psiquiatra parte do fenômeno e retorna a ele; o músico parte do fenômeno, mas o ultrapassa.
Han? Como assim?
O que quero dizer é que quando o psiquiatra vê, por exemplo, uma pessoa escutando vozes que mais ninguém escuta, ele se intriga com aquilo e começa a procurar entender a razão de ser daquele fenômeno. Teoriza. E, posteriormente, retorna com o resultado de sua teorização ao mesmo fenômeno: o escutar vozes que mais ninguém escuta. Depois disso, ele aguarda, paciente como um pescador, até que um outro psiquiatra invalidade sua teoria (ou não).
Já com o músico é diferente. O músico parte de anos de estudo de notas, escalas, modos e etc., do audível e do exequível tecnicamente para o absoluto da criação. Ele não precisa retornar ao lugar de onde partiu. Das barreiras de sua arte, ele simplesmente cria.
O que é arte?
Rá, obviamente não vou responder essa pergunta! Nem me arrisco! O que vou dizer é simplesmente a que espécie de arte me refiro quando digo que a psiquiatria é uma arte.
Se você já leu alguma coisa acerca dos tipos de conhecimento gregos, já suspeita do que estou por dizer. Usei a palavra techné ali em cima por isso. Se nunca leu, é possível que se surpreenda!
A verdade é que arte, para os gregos, não era exatamente o que é para nós atualmente. E é à arte grega que me refiro quando digo que a psiquiatria é uma arte.
Aristóteles, talvez o maior filósofo de todos os tempos, uma vez definiu três tipos de conhecimento: o empírico, o artístico e o científico.
Todos eles, em certa medida, são de algum modo empíricos. Pois, segundo Aristóteles, é da experiência (empírico é basicamente sinônimo de experimental) que se originam ciência e arte.
"A experiência parece muito similar à ciência e à arte, mas na realidade é através da experiência que os seres humanos obtêm ciência e arte, pois como diz acertadamente Pólo, “a experiência produz arte, mas a inexperiência, acaso”.
Aristóteles, Metafísica, Livro I, 981a1
Entretanto, a arte guarda uma diferença do conhecimento empírico: quem tem arte tem conhecimento de causa.
Então, por exemplo, uma pessoa que memorize que uma hipoglicemia (queda do açúcar no sangue) se trata com glicose (açúcar) é considerada detentora de um conhecimento empírico. Por outro lado, uma pessoa que sabe as causas das várias espécies de hipoglicemias, diferentemente da primeira, pode ser considerada detentora de um saber artístico.
"A arte é produzida quando a partir de muitas noções da experiência forma-se um só juízo universal relativamente a objetos semelhantes. Dispor de um juízo de que quando Cálias padecia esta ou aquela doença, isto ou aquilo lhe fazia bem, e semelhantemente com Sócrates e vários outros indivíduos, é uma questão de experiência; mas julgar que faz bem a todas as pessoas de um certo tipo, consideradas como uma classe, que padecem desta ou daquela doença (por exemplo, o fleumático ou bilioso ao padecer uma febre ardente) é uma questão de arte."
Aristóteles, Metafísica, Livro I, 981a10
Resumindo, então, conhecimento empírico e artístico se diferenciam pelo conhecimento das causas. Como os psiquiatras conhecem (ainda que em parte) as causas das afecções que tratam, então eles estão mais próximos da arte do que da experiência. Mas por que não são eles detentores de um conhecimento científico?
Questão de ciência
Bom, na verdade “eles detêm e não detêm” conhecimento científico. Isso porque, para Aristóteles, saber ensinar é um sinal de ciência, conforme ele explica nesta didática passagem:
"Geralmente o sinal de conhecimento ou ignorância é a habilidade para ensinar, e por isso sustentamos que a arte — preferivelmente à experiência — é conhecimento científico, visto que os artistas são capazes de ensinar, ao passo que os outros não são. Além disso, não encaramos quaisquer dos sentidos como sabedoria. Embora sejam realmente nossas principais fontes de conhecimento, não nos indicam a razão de coisa alguma, como, por exemplo, o porquê o fogo é quente, mas somente que é quente."
Aristóteles, Metafísica, Livro I, 981b10
Um pequeno adendo: claro que existe um certo elitismo na passagem acima. A sociedade grega era bastante hierárquica. A democracia ateniense, por exemplo, era para poucos: homens maiores de 21 anos e filhos de pai e mãe atenienses. Mas o valor da passagem não é seu elitismo (obviamente). O seu valor é a discussão de que só a percepção não é suficiente para o conhecimento. É preciso chegar às causas.
Mas, voltando ao assunto, se a psiquiatria pode ser considerada ciência no sentindo da passagem acima, ela não pode ser considerada no sentido da abaixo. Isso porque ciência, para Aristóteles, é um conhecimento desinteressado, isto é, não visa nada além de si mesmo. A ciência é um conhecer por conhecer, é uma contemplação. Já a arte não, a arte visa algo.
Por exemplo, a arte médica, em linhas bem gerais, visa a quantidade de vida dos seres humanos; a arte política, a prosperidade do Estado; a arte retórica, o convencimento das massas e etc.
"E à medida que mais e mais artes foram descobertas, algumas relacionadas às necessidades e algumas ligadas aos entretenimentos da vida, os criadores das segundas foram sempre considerados mais sábios do que aqueles das primeiras, porque os seus ramos do conhecimento não visavam a utilidade. Consequentemente, quando todas as descobertas deste tipo estavam completamente desenvolvidas, as ciências que não se relacionam nem com o prazer nem, ainda, com as necessidades da vida, foram criadas e, primeiramente, naqueles lugares onde os seres humanos dispunham de lazer. Assim, as ciências matemáticas” nasceram nas vizinhanças do Egito,” porque aí a casta sacerdotal podia desfrutar do lazer.”
Aristóteles, Metafísica, Livro I, 981b20
Ou seja, ciências são aquelas áreas que, atualmente, chamamos de “básicas” ou “não aplicadas”, como a física, a química, a matemática, a biologia e etc. As engenharias, a medicina, a farmácia e etc., portanto, não são ciências para Aristóteles, precisamente porque estão ligadas às necessidades da vida.
Então é por isso que o psiquiatra não detém conhecimento científico? Porque ele está preso às necessidades da vida? Precisamente!
A quais necessidades a psiquiatria responde?
Essa pergunta é a pergunta! A verdade é que existem diversas respostas a esse questionamento. Umas bastante agradáveis à maioria dos psiquiatras, outras bastante desagradáveis.
Com efeito, é exatamente no bojo do diálogo entre as várias respostas dessa pergunta que nascem as maiores polêmicas da psiquiatria. Questões disciplinares, patológicas, políticas e de saúde circulam essa pergunta feito moscas em busca do melhor ângulo da luz. Muitas buscam atestar a verdade. Mas quantas verdades não podem existir acerca de um mesmo ser?!
É verdade que o cavalo tem quatro patas, é verdade que ele é um equino, é verdade que ele serve de montaria, é verdade que ele pode não gostar de servir de montaria, é verdade que ele cansa, é verdade que ele vive, é verdade que ele morre e etc.
Não faz sentindo combater a verdade de que o cavalo tem quatro patas com a verdade que ele morre. Assim como também não se deve usar de sua serventia como montaria para explicar a razão de ele ser um equino.
Na psiquiatria acontece algo semelhante. A necessidade da psiquiatria pode ser encarada sob diversos vieses: individuais, coletivos, políticos, naturalistas, disciplinares, sanitários e etc. Nem sempre eles serão excludentes. Nem sempre eles esgotarão a questão da necessidade.
Mas, enfim, não vamos entrar nesse assunto agora. É muito longo e muito espinhoso. Deixemos para uma próxima!
Até lá, pense você mesmo: por que a psiquiatria é uma arte? Qual a sua utilidade?